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O teólogo e escritor pentecostal Gutierres Fernandes Siqueira escreveu um artigo em homenagem a Joseph Ratzinger, teólogo alemão e sacerdote católico que se tornou o papa Bento XVI e morreu em 31 de dezembro de 2022 aos 95 anos.
Antes de se tornar papa, Ratzinger produziu uma extensa obra teológica reconhecida como cristocêntrica, além de ter sempre se mostrado disposto ao diálogo com os protestantes.
Gutierres Siqueira, que tem livros publicados por editoras como CPAD, Thomas Nelson Brasil e Mundo Cristão, destacou o “caráter manso, cortês e gentil do ‘cão-de-guarda de Deus’ — apelido que o seguia pela postura firme contra a Teologia da Libertação”.
O teólogo pentecostal também pontuou que Ratzinger “teve papel central na construção da Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação — texto que faz o diálogo entre a teologia católica e o entendimento protestante clássico sobre a ‘justificação pela fé somente’”.
“Embora não tenha ‘reabilitado’ oficialmente Martinho Lutero — tirando os ‘anátemas’ que condenam o reformador alemão até hoje como ‘herege’ — Ratzinger foi quem mais chegou perto de reabilitá-lo. Em várias ocasiões, o teólogo alemão elogiou a personalidade e a teologia de Martinho Lutero”, acrescentou Gutierres Siqueira.
Ao final de seu artigo, o teólogo pentecostal demonstrou convicção na misericórdia de Deus e na doutrina da justificação pela fé, não pelas obras: “Que Ratzinger descanse em paz no repouso do Senhor Jesus Cristo e na esperança da ressurreição”. A frase suscitou debates nos comentários da publicação no Instagram, com críticas e elogios à postura de Gutierres Siqueira.
Confira a íntegra do artigo de Siqueira, publicado em seu blog:
Morreu hoje, aos 95 anos, o teólogo alemão Joseph Ratzinger, mais conhecido como o papa emérito Bento XVI. Sou evangélico e pentecostal, mas quem me conhece sabe que nutro um carinho pelo Ratzinger há anos. De longe, é o teólogo que mais admiro e que mais mergulhei em seus textos. Explico os motivos:
Em primeiro lugar, além da fama de teólogo e erudito, a leitura que fiz de biografias e depoimentos daqueles que o conheceram, sempre ficou claro o caráter manso, cortês e gentil do “cão-de-guarda de Deus” — apelido que o seguia pela postura firme contra a Teologia da Libertação. Aquele sendo o prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, órgão do Vaticano responsável pela integridade doutrinária da Igreja, sempre tratou os “adversários” com muita generosidade.
A teologia de Ratzinger é marcadamente cristocêntrica. Não só porque Ratzinger escreveu a maravilhosa trilogia Jesus de Nazaré — que une exegese e devoção — mas porque suas reflexões, homilias e construção teológica tinham a preocupação em resgatar a divindade de Cristo — perdida nas novas tendências teológicas que lembram apenas da natureza humana de Jesus de Nazaré. Mas, como diz o Credo da Calcedônia, Jesus é “verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem”. A cristologia que apenas enfatiza parcialmente sua natureza dupla tende a ser frágil. O próprio Credo observa que as duas naturezas de Cristo são inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis e inseparáveis.
Ratzinger foi o mais “luterano” dos papas. Quando ainda cardeal, Ratzinger teve papel central na construção da Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação — texto que faz o diálogo entre a teologia católica e o entendimento protestante clássico sobre a “justificação pela fé somente”. Embora não tenha “reabilitado” oficialmente Martinho Lutero — tirando os “anátemas” que condenam o reformador alemão até hoje como “herege” — Ratzinger foi quem mais chegou perto de reabilitá-lo. Em várias ocasiões, o teólogo alemão elogiou a personalidade e a teologia de Martinho Lutero. “Da minha parte, desde o início entendi que o diálogo com os protestantes fosse parte integrante da teologia. Por isso, já em Freising, fiz um seminário sobre a Confissão de Augsburgo [Confessio Augustana, os escritos confessionais fundadores da Igreja Luterana]”, declarou Ratzinger em entrevista (SEEWALD, 2017, p. 81).
Ratzinger foi, também, o mais “barthiano” dos papas. O teólogo reformado suíço Karl Barth (1886–1968) estava “entre as referências em teologia com as quais cresci”, disse Ratzinger em entrevista (SEEWALD, 2017, p. 120). Barth foi o teólogo protestante mais importante do século XX.
Ratzinger soube usar — e muito bem — a exegese crítica, mas também soube criticá-la. Por diversas vezes, Ratzinger alertou contra a tendência dos exegetas modernos de separar a Bíblia da fé. Outra preocupação de Ratzinger era de que a exegese se torne apenas “arqueologia”, a busca de vestígios mortos do passado, mas não o texto vivo soprado pelo Espírito. Em discurso no encontro com os bispos da Suíça, em 7 de novembro de 2006, Ratzinger declarou: “A nossa exegese fez grandes progressos; sabemos deveras muito sobre o desenvolvimento dos textos, sobre a subdivisão das fontes, etc., sabemos qual o significado que pode ter tido a palavra naquela época… Mas vemos também cada vez mais que a exegese histórico-crítica, se permanecer apenas histórico-crítica, remete a palavra para o passado, torna-a uma palavra daquele tempo, uma palavra que, no fundo, não nos diz nada; e vemos que a palavra se reduz a fragmentos porque, precisamente, se desfaz em tantas fontes diversas”.
Diferente de tendências contemporâneas na teologia, Ratzinger protestou o tempo todo contra a separação da práxis e da verdade. Se, em simultâneo, “a ortodoxia (doutrina correta) sem ortopraxia (vida correta) não atinge o núcleo da realidade cristã”, o teólogo alemão lembra que “a práxis da fé depende da verdade da fé, na qual a verdade do homem é tornada visível e elevada a um novo nível pela verdade de Deus. Portanto, ela é fundamentalmente oposta a uma práxis que primeiro quer produzir fatos e assim estabelecer a verdade” (BALTHASAR, RATZINGER, SCHURMANN, 1986, p. 46; grifos meus).
O apologista Joseph Ratzinger, apaixonado pela verdade e crítico dos relativismos diversos, ao mesmo tempo, sabia que não podia transformar Jesus em mera doutrina. Reproduzindo o pensamento de Romano Guardini (1885–1968), Ratzinger gostava de dizer que “a essência do cristianismo não é uma ideia, nem um sistema de pensamento, nem um plano de ação. A essência do cristianismo é uma Pessoa: o próprio Jesus Cristo. O essencial é Aquele que é essencial” (GUARDINI, 1982, p. XIV).
Ratzinger era um cético para com a promessa de progresso apregoada pela modernidade. Não é à toa para quem cresceu na Alemanha nazista. O país progrediu cientificamente como nunca sob o regime totalitário nazifascista e tinha uma população que absorveu o mal de Hitler mesmo sendo uma das populações mais bem-educadas do mundo. Os crentes do progresso diziam que Ratzinger era apenas um reacionário com medo do novo, mas numa análise atenta vemos no papa emérito a lucidez diante de qualquer promessa utópica que, imbuída de esperanças, desbanca para tentações totalizantes. O conservadorismo de Ratzinger não é a defesa ingênua do status quo, mas a saudável desconfiança para soluções políticas mágicas e messiânicas. As perguntas de Ratzinger ressoam: “Hoje, vemos que o progresso pode ser também destrutivo. Por isso, devemos refletir sobre os critérios a serem adotados, a fim de que o progresso seja verdadeiramente progresso. […] É progresso quando posso destruir? É progresso quando posso criar, selecionar e eliminar seres humanos? Como é possível dominar o progresso do ponto de vista humano e ético?” (RATZINGER, 2011, p. 62–63).
Ratzinger protestou bastante contra o relativismo ético, moral e epistemológico. Se não existe verdade, tudo é permitido. Os ventos da doutrina relativista levam a humanidade para o vazio de significado. “Cada dia surgem novas seitas e realiza-se quanto diz São Paulo acerca do engano dos homens, da astúcia que tende a levar ao erro (cf. Ef 4, 14). Ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como fundamentalismo. Enquanto o relativismo, isto é, deixar-se levar ‘aqui e além por qualquer vento de doutrina’, aparece como a única atitude à altura dos tempos hodiernos. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades”, alertou em homilia apregoada em 18 de abril de 2005. Os críticos acusaram Ratzinger de caricaturar o relativismo em slogans que não representam a complexidade do tópico filosófico. É a acusação de quem apenas se impressiona com a retórica inflamada e apaixonada das homilias, mas a leitura do Ratzinger “filósofo” mostra o grau de complexidade de sua crítica, especialmente no livro Fé, verdade, tolerância.
Que Ratzinger descanse em paz no repouso do Senhor Jesus Cristo e na esperança da ressurreição.
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